segunda-feira, 23 de abril de 2012


A Morte da Moral
Mais uma vez Nietzsche.
Nascido na Prússia e filho de Pastor Luterano, sua obra filosófica dirigida contra a instituição eclesiástica cristã e a famosa frase do bêbado dizendo: “Deus está morto!”. Isto se deu por volta de 1882, em seu livro “Gaia Ciência”.
Quando ele expõe esta sentença, não está declarando a morte daquele que sempre foi e será, mas a morte da imanência divina em meio àquela igreja obsoleta e seu reflexo na sociedade e cultura de seu próprio tempo. Havia uma ruptura entre os valores do cristianismo e a práxis social européia, dita, por excelência, cristã. Em outras palavras, para o ser comum Deus já não tinha espaço em sua existência.
A obra, o pensamento e as proposições de Nietzsche conduziram, entre tantos outros produtos, ao fim do pensamento metafísico e ontológico. Metafísica podendo significar algo como aquilo que vai além da natureza (à grosso modo), além do tangível; ontológico, trata das teorias do ser; do ser em si. Ambos os entendimentos estão carregados do conceito de uma existência que transcende a matéria, aquilo que é perceptível pelos sentidos.
A maior parte da obra de Nietzsche é uma crítica ao socratismo, ou seja, ao entendimento numa existência além da realidade percebida, e desta forma estende esta crítica ao cristianismo, por entender que este limita o homem a um conformismo e uma negação de si próprio. Ele entendia, que os valores ascéticos do cristianismo, fazem com que o ser humano esteja acorrentado a valores que negam a existência atual, projetando-o para uma existência fictícia: o mundo metafísico.
O homem nietzscheniano rompe com a busca do Bem Supremo da filosofia de Platão, por um lado, e com as Virtudes do Deus Cristão, por outro. As verdades, deste “sobre-homem”, não estão contidas ou expressas na dimensão além phisis, mas devem ser buscadas e encontradas nele mesmo, em si mesmo, por si mesmo. O ser humano passa a ser agente e protagonista único de seu destino.
Todo este pensamento conduz a uma ruptura com a idéia de absolutos: verdade, justiça, integridade, moral, etc. Todo este pensamento filosófico conduz o homem a desassociar sua relatividade a “valores divinos” ou “bem supremos”, que devem ser conhecidos, buscados e traduzidos em sua práxis. Não havendo Deus, devem ser trazidas ao nível humano as definições de bem e mal, certo e errado, bom e ruim, justo e injusto, verdadeiro e falso, etc.
Mais tarde, por volta de 1979, um francês, Jean-François Lyotard, em seu livro “A Condição Pós-Moderna”, propõe o fim das meta-narrativas e da meta-história. Lyotard esta constatando que os discursos intelectuais não podem mais ser estabelecidos, na pós-modernidade, como o eram na modernidade, sustentados por senso de destino, por uma linha histórica que conduzia o ser humano à uma redenção final.
Desde Platão até Hegel, a filosofia, e, portanto, o pensamento científico ocidental, estava posto sobre a premissa que há um destino; para Platão o destino final era a República, um lugar de justiça plena, governada por homens sábios, rei-filósofo, que pelo conhecimento das formas puras, obtém o Sumo Bem.
Hegel propôs seu modelo dialético, onde a racionalidade dialética faz o universo funcionar como um Grande Pensamento, movendo-se por tríades de tese-antítese-síntese. A síntese, uma vez institucionalizada, será tida como uma nova tese, recomeçando o processo, que conduz a uma meta-história de evolução do pensamento ontológico.
Desta forma, Lyotard, apresentando o fim das meta-narrativas e da meta-história, decreta o fim da filosofia como ela foi entendida até a modernidade, mas, mais do que isto, a meu ver, retira do ser humano a conexão com o eterno, como, também, eu entendo. Estar conectado ao eterno é o senso de que a existência não se limita à vida biológica, e que, portanto, o ser humano, não apenas vive o aqui e agora, mas vive o além tempo: a eternidade. Isto também é ontologia e metafísica.
Sabendo que a filosofia, enquanto modelo de pensar a existência humana é platônica, e, portanto, dialética e ontológica, tanto Nietzsche quanto Lyotard, estão dizendo que já não mais há filosofia ocidental, mas um pensamento que se produzirá por ruptura e que expressará valores do e para o ser humano, que já não mais tem “valores absolutos” e não está indo para lugar algum, no que tange aos ideais de liberdade e justiça.
Um pouco antes da obra de Lyotard, entendendo e dominando este aparato ferramental filosófico, Jean-Paul Satre, o Filósofo Existencialista francês declara: “se Deus não existe, tudo é permitido.” É no existencialismo de Satre, que a busca pelo prazer substitui a conexão com o absoluto de Deus.
Na proposição de Nietzsche, o ser humano deixa de ter fé na vida de Deus e passa a crer em si mesmo e no conhecimento por si gerado, como referência única para a auto-promoção da liberdade; em Lyotard o ser humano não mais vê um processo que conduzirá inexoravelmente a este estado de liberdade e justiça. Passa a ser concebido um ser humano sem a referência do absoluto (na verdade, na justiça, na virtude, etc) e sem uma esperança num culminar do Bem. Resta a este ser humano a concepção existencialista da maximização do prazer individual e da expressão do corpo.
Neste instante a moral está morta!
Ao dizer “a moral está morta”, de fato entendo que o conjunto de dogmas morais que regia as decisões entra em colapso e perde o seu status. As decisões sobre o certo e o errado, entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, entre o verdadeiro e o falso, não mais levam em conta um código absoluto divino e não mais, necessariamente, nos remetem a uma nova dimensão de nosso destino. Tendo Deus morrido e não havendo destino, há o agora, as oportunidades e efemeridade da vida.
Esta moral social “revelada” por Deus, interpretada pelo sacerdócio era ajuizada pela congregação social. Os pecadores capitais, dantescamente estabelecidos, eram primeiramente punidos pela exclusão em zonas meretrícias e guetos de imundícia, para que depois, no pós-morte, fossem fustigados pelo fogo eterno. Os santos fieis impunham um rígido treinamento de pré-inferno aos impuros infiéis, enquanto ainda partilhavam da vida biológica.
Num tempo em que o peso do juízo divino, que agia sobre a moral social e individual, pairava sobre as cabeças e era como guilhotina pronta a decepar os impenitentes, então, deixava-se de gozar oportunidades “pecaminosas”, luxúrias e degustações de prazeres carnais, pelo simples terror do golpe divino sobre os “rebeldes pecadores”.
Num tempo onde o “algoz” foi demitido, a guilhotina enferrujou e paulatinamente as “bastilhas” moralistas são derrubadas, o imoral transmuta-se em amoral e a moral em imoral.
Trocando em miúdos, as decisões, micro e macro, individuais e grupais, pessoais e transnacionais, não carregam a premissa dos valores metafísicos, não há uma interação entre o agradar a Deus e o ser punido por Ele. Ainda que para muitos há o medo do demônio, não há temor a Deus. O que cada indivíduo, ou grupo, ou nação, ou grupos hegemônicos, desejam fazer, ancoram suas premissas nos valores que eles mesmos expressam e os conceitos de satisfação que eles mesmos buscam.
Como exemplificação do golpe desfechado aos moralistas e seu direito de interpretar, julgar e punir o imoral, ou aquele que se predispunha contra os códigos de valores de um estado de entender a ordem social, foi o fim da censura que o regime militar de 64 impunha sobre a informação e aos costumes. Enquanto a censura e o AI5 determinavam o “modus viventi”, o fim deles transferiu aos indivíduos, partidos, meios de comunicação, os aparelhos ideológicos e formadores de opinião em geral, a tarefa de definir um código “ético” próprio, que no limite, podendo ser interpretado como a “raposa cuidando dos ovos”.
Mas, seriam o Estado e a Instituição Eclesiástica, os guardiões legítimos e legais dos ovos?
Esta revolução silenciosa no ambiente do pensamento, do conhecimento, das inter-relações sócio-culturais, demanda uma revisão do posicionamento da Igreja e do papel dela em meio à sua inserção histórica. É revolucionário, pois se trata de uma desconstrução dos códigos de valores que se tinha por referência. É silencioso, posto que se faz no submundo da intelectualidade e é trazido à sociedade pela força emergente da “arte”.
A Igreja pode, partindo para a defesa da Instituição Eclesiástica que a sufoca, aceitar e pactuar com ela uma leitura da Bíblia e a confecção de códigos que visem “defender a honra da moral” de Deus. Uma leitura do Novo Testamento que ignore o envolvimento de Jesus com as prostitutas, os imorais, os contraventores e outros que não partilham da moral religiosa de Seu tempo. Impor livros apócrifos que digam aos “irmãos” o que o clero diz que pode e não pode, pelo que eles entendem da Lei da Bíblia.
Esta Instituição que desgraça a cruz graciosa, por dogmatizar que além do madeiro há a ordenança e que a obediência prevalece sobre a fé, vê ruir seu castelo de cartas marcadas, pela brisa da pós-modernidade. Sua sangue em petições para que o “Aba Pai”, Deus de Amor, ponha fogo na Terra e destrua o mundo e os homens que nele habitam, mas que, no entanto, os arrebate anteriormente para longe deste caos infernal. O moralista olha para o juízo e a exclusão como modelo de sua redenção.
A Igreja deve, buscando os fundamentos da graça e do amor, fazer eco com a voz do Espírito, jubilando-se pelo véu do farisaísmo que esta sendo rasgado, impelindo-nos a percebermos que somos seres limitados, angustiados, frágeis, indecisos, desgraçados sem a graça, erráticos e errantes, insensíveis e mesquinhos. O mesmo véu nos faz ver que somos ricos e plenos, fortes e valorosos, agraciados e benditos, sábios e competentes, maleáveis e sinceros.
Este vento divino sobre o farisaísmo hipócrita (hipocrisia nossa e não deles), permite olharmo-nos, não com os olhos de Narciso, mas pela lente do eterno e verdadeiro. Este tufão que varre as choupanas das Instituições, impulsiona nossa nau à novos horizontes de ser. Este fenômeno “mundano” arquitetado por Deus é o processo que nos permite lançar fora todo o peso de uma moralidade atéia, ainda que enrustida na religiosidade.
Estamos assistindo ao espetáculo da morte da moral, para que ao fim o ser, em sua essência, triunfe. É como nos diz em Hebreus, “...ainda uma vez, mostra a remoção das coisas abaláveis, como tinham sido feitas, para que as coisas que não são abaláveis permaneçam.” (Hb 12: 27). Ou ainda com está escrito que “...agora vemos como que por espelho, obscuramente, então veremos face a face; agora conheço em parte, então conhecerei como sou conhecido” (I Co 13: 12).
Isto posto podemos propor que a remoção de uma dogmática moralista, ou moral da doutrina das virtudes, permite que a realidade do que de fato somos, sem as imposturas sociais, sejam reveladas e demonstradas pela qualidade de nossas decisões e posturas diante de Deus, de si mesmo, do próximo e da criação. Uma vez revelada a nossa essência, sem os véus da moral social e destituídos dos códigos da escravidão à religião da moral, é possível enfim que Deus efetue de fato em nós o querer e o efetuar.
A implosão desta liturgia das aparências permite a revelação das estruturas interiores do indivíduo e das culturas. O desmascaramento de nossas motivações nos conduz, inexoravelmente, a refletir em nossa práxis, a nossa essência. Para o bem e para o mal.
Aquele que de fato tem vínculo com Deus e tudo o que Ele representa em termos de justiça, verdade, ética, retidão, idoneidade, etc, procurará, por amor e não mais por lei e obediência, traduzir em sua existência tal compromisso de aliança. Aquele que não está alinhado com o Ser Divino, ainda que esteja vinculado à religião, demonstrará pela qualidade de sua vida a edificação de “si mesmo” e do “sobre-homem nietzscheniano” e a ruptura com devir dialógico, apontando para o suprimento de sua individualidade.
Creio que neste momento espantosamente magnífico, o Pai, olhando muito à frente de nosso tempo, aguarda confiante no retorno de seu filho, o Pródigo, cujo coração transformado pelo empirismo pragmático dos prazeres circunstanciais, retorna tendo em sua mente a lembrança, não de um algoz da guilhotina, mas de um Senhor que nos acolhe mesmo em face à nossa sujidade.

Bom texto de Marcos Nicolini


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