terça-feira, 24 de abril de 2012

Ser Nu

MARCOS NICOLINI



O ser nu se vê nu, está nu, relaciona-se nu e não se percebe nu.
O homem Adão nu e a gênese do homem vestido, escondido, simulado, enrustido, pervertido, moralizado, separado, hierarquizado, deformado.
Vamos nos propor a, hereticamente, ler Adão não sob a égide do cronos – dos segundos, minutos, horas, dias, séculos, etc -, do homem criado e colocado na história, antes vamos transgredir e lê-lo metaforicamente a partir do kairos, do tempo que não é tempo: que foi amanhã, será ontem e é hoje.
Esqueçamo-nos das defesas cosmológicas e teológicas: o eterno conflito ente Caim e Abel. Sejamos infantis, ingênuos e criativos, e apenas leiamos a palavra Adão como se esta fosse sinônimo de gente, de homem, de mulher, de ser humano atemporal, de todo tempo e de tempo nenhum. Falemos dele não como um ícone de nossa defesa de tese científica, filosófica ou teológica, mas como uma metáfora que se repete em cada um de nós: Adão; ou simplesmente: a metáfora do homem nu.
Este Adão criado nu e posto na terra; a terra que tão pouco, nesta metáfora, é um planeta, mas, transcrevendo Pierre Levy* “a Terra não é outra coisa senão o mundo de significações que, no paleolítico, desabrocha na linguagem, nos processos técnicos e nas instituições sociais...a Terra não é o solo originário, nem o tempo das origens, mas o espaço-tempo imemorial cuja origem não se pode designar, o espaço que sempre existiu da espécie, que contém e de onde transborda o início, o desdobramento e o futuro do mundo humano. A Terra não é um planeta, sequer a biosfera, mas um cosmos em que os humanos estão em comunicação com os animais, as plantas, as paisagens, os lugares e os espíritos. A Terra é esse espaço onde os homens, as pedras, os vegetais, os bichos...encontram-se, falam-se, misturam-se e separam-se para se reconstruir perpetuamente...sobre a Terra tudo é real, tudo é presente, e a visão obtida no transe, a palavra inspirada...Sobre a grande Terra nômade, o sonho e o despertar certamente não se confundem, mas sustentam-se, interpenetram-se e alimentam-se um ao outro. Os animais vivem num nicho ecológico. O humano imediatamente ultrapassa todo nicho, humano vive sobre uma Terra que ele elabora e re-elabora constantemente em suas linguagens...a humanidade é a espécie devotada à Terra, ao cosmos dos animais e das plantas que falam, a espécie devotada ao "caosmos" das metamorfoses...a revolução neolítica evidentemente não suprimiu a grande Terra nômade e selvagem, o jardim imemorial. O inconsciente é uma péssima palavra para traduzir essa permanência da Terra, pois ela nos fala de uma pequena esfera empobrecida, individual, familiar, de onde o cosmos foi excluído. A grande Terra cósmica está sempre aí, ressoando muito longe sob nossos passos, sob o cimento dos territórios, sob os signos irrisórios do espetáculo. Atravessando as fronteiras das identidades, o coro da Terra canta ainda a sua louca canção de sonho e de vida, o canto que sustenta a existência do mundo.”
Adão está nu sobre a terra: sabe-se nu, mas não se percebe nu. Ele está nu diante de Deus, de Eva, da criação; de seu espelho. Diante de si está nu, mas o que é estar nu, ou vestido, não é diferenciado em si, em sua mente. Não indaga, não cogita, simplesmente ele não está nu: é nu.
Não há insegurança, vergonha, ocultamento, distinção, repartição, proteção. Não há roupas a tirar.
Talvez interpretemos o tempo nu, entendendo o tempo da roupa. A roupa que é o ícone da moral de nosso tempo. É a veste, é o véu, é a separação, a interpretação, a máscara do ser escondido.
A roupa é em si mesmo um símbolo de nossa época, de muitas épocas. A roupa é proteção contra as intempéries: o frio e calor, vento, sol, poeira... Apresenta-se como um agente de segurança e proteção contra as condições externas: as agressões na terra. A armadura medieval-contemporânea, proteção contra os atritos na terra.
A roupa nos insere no cosmos, além da terra. O cosmos herdado, pré-concebido, pré-conceituado, preconceituoso, moral. A roupa nos insere e posiciona na cultura, na sociedade, no tempo e na moda. É o cartão de visita das tribos, dos clusters, dos guetos, das castas, dos nichos, dos bichos...É o veículo da identidade, da linguagem sem som, do diálogo de babel, da embalagem antropomórfica: a indústria da reificação. A chave social.
A roupa da terra, do cosmos, do eu. Que oculta, separa, limita, exclui, deixa-ver-não-deixa-ver. Equipara e distancia. Não se é visto, sendo olhado. Não se é entendido, sendo percebido. Camufla, simula, encena, expressa velando. Limita o olhar ao espaço e à linguagem censurada. É a água do iceberg.
Mas o ser Adão está na terra e no cosmos, entretanto é nu. Está na terra, pois da terra veio, formado do pó da terra, ligado a ela. Está no cosmos, pois interfere na terra com a linguagem, sendo consciente pelo espírito que lhe foi doado, gerando a alma que pensa, e concebe, e critica, e nomeia, e transita em meio às espécies e a besta: a serpente que falseia.
O homem nu é livre; antes é o ser humano nu, pois macho e fêmea os criou. São um, embora dois, sendo nus.
O Adão é livre porque não tem véu: conhece a verdade. Ele é perfeito até que se achou iniqüidade em seu coração, e disse: quero ser Deus, matando Deus da minha existência.
Adão se vê nu, se percebe nu, dá conta de seu estado descoberto e cobre-se.
A experiência do homem nu diante do gato, como nos relata Jacques Derrida**: “freqüentemente me pergunto, para ver, quem sou eu – e quem sou eu no momento em que, surpreendido nu, em silêncio, pelo olhar de um animal...tenho dificuldade, sim, dificuldade de vencer um incômodo...vergonha de quê, e nu diante de quem? Por que se deixar invadir de vergonha? E por que esta vergonha que enrubesce de ter vergonha?...Vergonha de estar nu diante de um animal...Assim, nus sem o saber, os animais não estariam, em verdade, nus. Eles não estariam nus porque eles são nus. Em princípio, excetuando-se os homens, nenhum animal jamais imaginou se vestir. O vestuário seria o próprio do homem...o “vestir-se” seria inseparável de todas as outras figuras do “próprio do homem” (palavra, razão, logos, história, rir, luto, sepultura, dom, etc)...Para o homem...o vestuário corresponde a uma técnica”.
Costurar para esconder a sua nudez percebida: a técnica das técnicas, a primeira técnica. Sempre, até ali, esteve amoralmente nu, quando se vendo nu, moraliza-se cozendo, vestindo-se, escondendo a condição que não percebia. Sua nudez agora é maior, sob a roupa, do que anteriormente sem dar-se conta. Esconder é sua segunda técnica.
Argüido a respeito de sua condição moral sobre o nu que era, ainda oculto e escondido, ele se põe vítima, faz-se irresponsável, acusa e perverte a lógica: “a mulher que Tu me deste...” A lógica do macho, do “machomo” que queria ser Deus, dizendo: “foi culpa Sua, que me deu esta mulher e ela me conduziu ao erro; sou vítima do sistema, sem responsabilidade casual”.
Adão, agora nu, por estar vestido, desenvolve a técnica de fazer roupas, de ocultar-se na terra e perverter a lógica. Sua nudez mortal.
O ser nu, agora vestido, ocultado e pervertido, está desesperançado, dilacerado em sua escolha, sonhando em voltar para um estado que se fecha, num lugar que se desfez, para um Éden proibido. Não há mais o ser despido até que a nudez seja vista novamente sem ser percebida e esta nudez cubra o nu dos que não são nus.
O segundo Adão: a nudez daquele que é. Aquele que é, sendo visto como de fato é: sem véu, sem mistério, sem perversão. Sua nudez está na cruz, sua roupa está no chão, sendo negociada pelos homens nus vestidos, ocultos e pervertidos: “se és Deus, salva-te”.
O Homem nu que ousou dizer: “Eu Sou”, embora tenha se esvaziado do Ser. O Ser nu, que não se ocultou, mas fez-se carne e andou como homem; não acusou, antes substituiu: fez-se nu, para cobrir o nu e trazer dignidade ao ser que não pode mais ser nu. Não veio para desnudar o homem nu, mas trocar-lhe as vestes, lançando fora a folha da parreira e pondo-lhe linho puro e rubro. Não veio restabelecer a condição nua e despida, mas lança-lo na condição nua e revestida.
O homem, o sujeito subjetivo moderno, que vê ser rasgada sua roupa e é lançado à terra desnudo, desvelado numa condição de não controle do desvelamento, tece novas roupas de simulação, se fazendo ele mesmo o próprio véu, reificado em sua condição nua, pós-moderna.
Em sua nudez rejeitada, proibida, imprópria e inacessível, vê sua própria mortalha: o sepulcro caiado. Na nudez que não é sua, mas traz a veste da nudez permitida, vê a vida, a recolocação na esfera do Ser pleno, de ser restaurado. Este homem que está nu, olha para o espelho e vê o Homem que é nu. Ao olhar para a nudez que não mais é sua, e nem de Eva, é vestido para ser livre: livre para ver a verdade.
*Pierre Lévy: O Espaço do Saber, extraído do livro L'Ntelligence Coletive - 1995
**Jacques Derrida: O Animal que sou - 1999

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